“Um corpo que cai”
– Manuel Sanchez
Quando eu recebi a notícia de sua morte por uma mensagem seca através da internet, não foi exatamente uma surpresa. O estado mórbido em que ele se encontrava nos últimos anos, afastado de todos e deprimido, prenunciava uma fatalidade antecipada. Mas me banhei em uma tristeza imensa: porque agora estávamos definitivamente separados, sem chance de uma reconciliação. Não nos falávamos há muitos anos.
Antes de sair, peguei meu álbum e escolhi uma foto antiga. Meio amarelada. Sempre gostei daquela foto.
Andando pela ruazinha de paralelepípedos, eu via os túmulos cinzas e suas estátuas de cobre e pensava se pelo menos naquele segundo meu antigo amigo tinha encontrado um pouco de paz.
Se é verdade que a hora da morte é sempre solitária e um evento individual, também é certo que o suicídio é a conclusão de um relato social que envolve múltiplas relações, ligações e rupturas em encontros desafortunados.
Na capela austera, me sentei ao lado de um homem baixo, feições duras e olhar fixo em um caixão fechado apoiado em cavaletes. Pai e filho que não se viam há mais de década, resultado de uma sucessão de desencontros, acusações e falta de cuidado. Afetos partidos entre dois homens difíceis que se culpavam pela morte da única mulher que havia unido ambos. Uma história familiar de separação.
A ausência naquele momento de ex-esposa e filha era uma marca forte. Ela havia me avisado do ocorrido – por mensagem. Relações amorosas entre marido e esposa, pai e filha, íntimas e frágeis destruídas por brigas, traições e mágoas do qual participaram amigos e familiares. Se a ex havia decidido não reencontrá-lo, a filha havia sido arrastada pela decisão da mãe. E teria em sua mente a certeza de uma versão.
Não havia colegas de trabalho. Nem outros amigos de infância. Exceto o pai, nenhum outro familiar.
Meu amigo havia se arremessado do sexto andar de um prédio. Estava sozinho em casa. Um ato final e solitário. Uma decisão individual como muitos insistem fantasiosamente.
Fantasia. Foi tecido e costurado por anos e décadas de convívio social, relações afetivas variadas, frustrações comunitárias, diálogos interrompidos.
Todo suicídio é social.
Não estamos sozinhos nem mesmo quando fecham as cortinas.
O caixão foi levado por mim, pelo pai de meu amigo e dois funcionários anônimos do cemitério. Ninguém falou nada. Mas achei que deveria cumprimentá-lo. Brinquei por tantos anos em sua casa quando era criança. Mas acho que ele não me reconheceu. E também não fez perguntas.
Depositamos o corpo de meu amigo de forma rápida. E o seu pai saiu sem se despedir. Os funcionários foram cuidar de seus afazeres.
Fiquei um pouco mais de tempo. Olhei as árvores que se levantavam para o céu azul nesses dias quentes de verão. Escutei os pássaros que insistiam em cantar competindo com o barulho dos ônibus que atravessavam a rua abaixo, levando pessoas cheias de planos, afetos, raivas, fracassos, sonhos e realizações. Feixe social.
Sobre a lápide coloquei uma foto antiga que tirei do meu álbum. Dois moleques. Olhávamos para a câmera e sorríamos abraçados cercados de brinquedos e revistas em quadrinhos. Sempre gostei daquela foto.
Sai do cemitério reencontrado com a vida e com meus desejos. Disposto a costurar, aproximar, acalentar e a cuidar. Somos um mar de afetos que explodem na praia. Deixemo-nos banhar.
Havia um céu azul em um dia quente de verão.